domingo, 11 de novembro de 2007

Declamadores e actores

O sempre insistente Sócrates interroga o rapsodo Íon sobre a sua profissão:

"Sócrates – Vá, Íon, diz-me isto e não escondas o que te vou perguntar: quando recitas bem versos épicos e impressionas extremamente os espectadores, ou quando cantas Ulisses a irromper pelo limiar da casa, revelando-se aos pretendentes e espalhando as flechas aos seus pés, ou Aquiles avançando sobre Heitor, ou algo inspirador de pena sobre Andrómaca ou sobre Hécuba ou sobre Príamo, estás tu então no teu juízo ou ficaste fora de ti, ou a tua alma, divinamente arrebatada, julga estar perante as situações que descreves, ou em Ítaca ou em Tróia, ou onde quer que seja a epopeia?

Íon – Como é evidente para mim, ó Sócrates, a prova que apresentas! Responderei sem esconder nada. Eu, quando declamo algo inspirador de pena, os olhos enchem-se-me de lágrimas; quando é algo assustador ou terrível, arrepiam-se-me os cabelos de medo e o coração salta.

Sócrates – Pois bem. Diremos nós, Íon, estar então no seu juízo aquele homem que, estando todo arranjado com roupas coloridas e coroas douradas, chora nos sacrifícios e nos festivais, sem que ninguém lhe tenha tirado estas coisas, ou que tem muito medo, estando perante vinte mil homens amistosos, sem que ninguém o venha despir ou fazer mal?

Íon – Por Zeus, é claro que não, Sócrates, para dizer a verdade!

Sócrates – Sabes então que vocês provocam o mesmo a muitos dos espectadores?

Íon – E sei-o muito bem! Vejo-os de cima do estrado, de cada vez que choram ou lançam olhares terríveis, ou ficam chocados com o que digo. Pois devo tomar muito atenção com eles, porque se os puser a chorar, eu próprio rirei ao receber o dinheiro, mas se eles rirem, eu próprio chorarei, tendo perdido o dinheiro."

(Platão, Ion, 535b1-535e6; tradução minha)

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